Em 1915, primeiro ano da Primeira Guerra Mundial, Freud escreveu um texto com reflexões sobre a guerra e a morte. Entre outras coisas, ele registrou a desilusão que a guerra produziu em relação à ciência como possível resposta aos problemas das relações humanas e à moralidade que deveria constituir os laços humanos. Naqueles tempos sombrios, escreveu ele, foi revelado de forma contundente que “nossa consciência não é o juiz inflexível que os professores de ética declaram”, pois “quando a comunidade não levanta mais objeções, verifica-se também um fim à supressão das paixões más, e os homens perpetram atos de crueldade, fraude, traição e barbárie”.
Não vivemos tempos de guerra entre estados ou nações da qual nosso país faça parte. Contudo, vivemos tempos de medo e morte. Duas palavras que se aplicam muito bem a uma guerra e, de forma diferente, também à experiência da pandemia. Mas não só.
De certa forma, estes significantes são típicos do tempo em que o discurso neoliberal se torna dominante. É pela produção do medo, da incerteza sobre o futuro, da necessidade de garantias a respeito da saúde, do bem-estar e da segurança individuais que o mercado funciona atualmente. Há muitos estudos sobre isso.
Não que o futuro não despertasse insegurança em outros tempos. O futuro é sempre incerto. As contingências da vida, a roda da fortuna, não estão sob controle.
Porém, no tempo em que se acreditava mais na solidariedade, na capacidade humana e coletiva de nos auxiliarmos uns aos outros, esse futuro parecia menos perigoso. O tempo do welfare state foi, talvez, aquele que mais se aproximou disso (ou menos se distanciou) na experiência do ocidente.
Com o neoliberalismo, a responsabilidade é de cada um por si mesmo. Seja para alcançar o “sucesso”, seja para garantir o futuro. Tudo é privado, tudo depende somente de cada um.
Neste cenário, a pandemia trouxe algumas questões. Ela aconteceu justamente quando esse discurso se impunha. Então, a irrupção de um enigmático e angustiante real pôs a nu que frente à incerteza sobre o futuro e a necessidade de tomar decisões, muitos optaram pelo mecanismo em detrimento da comunidade (ou dos indivíduos, como quer que se entenda). As pessoas são sacrificáveis - umas mais que outras, é claro! - mas a economia não pode parar. É preciso continuar a produzir, comprar, consumir, exaurir-se como sempre. Tudo deve continuar no mesmo passo de antes para que a máquina não pare.
“Lamento”, disse um uma peça da engrenagem. Peça que não sabe que é peça, não conhece a engrenagem, não sabe de quase nada, mesmo que ocupe um lugar privilegiado. Porém, para além da engrenagem que não se importa com mortes, há um mecanismo que também é genocida, apoiado em um sistema político e econômico com tendências suicidas, como se a economia não dependesse dos corpos (vivos!), como se a riqueza fosse apenas números que não dependem da vida e do trabalho.
A peça que não se importa com as mortes e que ocupa um lugar privilegiado é apenas a caricatura do mecanismo de mortificação típico das terras subdesenvolvidas. A caricatura assusta, talvez por desvelar o gozo trágico de um mecanismo maior que não se importa em eliminar o que não tem utilidade – vida nua, diria Agamben.
Retomando a citação de Freud, não vivemos um tempo no qual haja desilusão com a ciência. Bem ao contrário, propaga-se a necessária confiança nela. Há, contudo, a desilusão profunda com a moralidade que deveria constituir as relações humanas. Essa crise não é nova e parece não ter previsão de acabar.
Mesmo assim, insistamos na questão: a comunidade – que ainda pode existir - não vai colocar objeções? Vai deixar que as ações más e a crueldade vençam?
Enquanto isso, deixo aqui a triste charge do perspicaz Duke e, parodiando o Capitão Nascimento na clássica cena da aula noturna no filme Tropa de Elite, digo:
Genocida
Do grego, γενοκτονική (genoktonikí)
Do alemão, Völkermord
Do francês, génocidaire
Do inglês, genocidal
Do espanhol, genocida
...
Parabéns pelo texto que joga luzes no , atual, contexto tão sombrio.