Há alguns anos, a comunidade brasileira começou a nomear alguns de seus membros como “mito”. Jogadores de futebol e algumas celebridades receberam a denominação, aplicada a eles como uma qualidade.
Algum tempo antes, na linguagem midiática e até cotidiana, algumas personalidades consagradas às artes foram chamadas assim. Lembro quando Paul McCartney veio ao Brasil para grandes shows e alguns críticos de música disseram algo como “só de ter sido um dos Beatles, ele é um mito”. Esta definição aponta para um novo sentido dessa palavra. Aqui, a palavra mito não é empregada como significando um relato fantástico sobre fatos inexplicáveis, a crença de uma comunidade em uma narrativa especial para encontrar um significado comum no laço comunitário ou mesmo a história, provavelmente fictícia, de uma pessoa simbolicamente relevante na história. Mito passa a se referir a uma pessoa com habilidade extraordinária, uma exceção humana, alguém que marcou a história nas artes, na política, nas ações sociais, nas guerras, na ciência, mas que ainda está vivo. Uma pessoa que, inclusive, continuava a produzir história.
Contudo, um novo uso da palavra surgiu, justamente aquele com o qual começamos este texto. No Brasil, jogadores de futebol, por exemplo, foram chamados de mito ao serem recebidos pelos torcedores do time quando chegavam ao clube para trabalhar. Nesse novo significado, estava incluída a ideia – já de uso comum - de que o indivíduo era uma exceção, no sentido de ser extremamente habilidoso e diferenciado na sua função ou atividade. Porém, parecia incluir também a crença no potencial fabuloso daquela pessoa e a expectativa (desmedida) em um desempenho extraordinário ainda por acontecer.
Não tardou para se popularizar o verbo “mitar”, que se refere a uma palavra (discurso, frase) ou a um gesto que supostamente é marcante, lendário, singularíssimo ou implacavelmente conclusivo, preferencialmente ligado àquelas pessoas que já eram consideradas mitos. Os atos de um mito passam a ser supostamente míticos.
Foi com estes novos sentidos que o substantivo e o verbo entraram também no cenário político brasileiro recente. Nesse cenário, mito parece ter expressado ainda mais a ideia de uma expectativa sem fundamento em um suposto potencial que toma consistência em uma crença compartilhada.
Mas há outro sentido para mito. Ele se encontra na definição psicopatológica de mitomania, que é a compulsão a contar mentiras de forma consciente para se autoproteger ou para tornar a realidade mais próxima de seus próprios desejos ou fantasias. Nessa acepção, mito, como mentira individual deliberada, se opõe à realidade compatilhada e, de alguma forma, fundamentada. Alguns o fazem porque instrumentalizam completamente suas relações com os outros a fim de alcançar seus objetivos pessoais, outros porque é intolerável lidar com a realidade que se apresenta – fundamentalmente a da castração simbólica, de acordo com a psicanálise – e, por isso, é preciso negá-la a todo custo, e outros, ainda, porque apresentam algum tipo de deficiência cognitiva que prejudica o entendimento e interpretação articulada da realidade compartilhada. Pode ser também que seja tudo isso ao mesmo tempo. Temos assim um sujeito que mente compulsivamente e se enreda cada vez mais numa realidade isolada do laço social.
Parece que a sociedade brasileira conseguiu reunir em uma figura histórica (viva) as duas acepções de mito. Por um lado, a crença cega em um certo potencial de desempenho idealizado em alto grau cujo efeito mais nefasto é a produção de “certezas” ou “verdades” compartilhadas em nome da devoção a um mito que, por ser sobre-humano, não erra, mesmo que se contradiga todo o tempo. Por outro, a produção compulsiva da mentira para criar uma realidade conveniente.
É evidente a existência de interesses calculados de alguns grupos que circundam a manutenção do lugar do mito. Mas fica a questão: é esse o mito que os brasileiros escolheram eleger? E mais: o que esta escolha mantém recalcado? Do que não queremos saber com a eleição desse tipo de mito? A que gozo ela corresponde?
Não podemos nos furtar de refletir e produzir sobre isso.
Parabéns Hélio, pela clareza conceitual e explicação do fenômeno "mito". Abraço