Lacan disse certa vez que a segregação é ampliada à medida que se impõe um discurso universalizante. Penso que muitos fenômenos que vivemos indicam isso. O BBB talvez possa caricaturar algum deles.
A atual versão do programa tem despertado comentários em meios pouco comuns. Parece que a montagem do grupo conseguiu atingir de forma aguda o objetivo do programa: render dinheiro. E conseguiu isso ao escolher meticulosamente pessoas avaliadas como potenciais geradores de conflito para confiná-las.
Temas como identitarismo, racismo e xenofobia já foram indicados e comentados por muitas pessoas. Alguns desses comentadores dizem que os acontecimentos na casa têm contribuído para, por exemplo, desqualificar a luta antirracista ao fornecer para o grande público a imagem de pessoas negras que se aproximam dos estereótipos de violência e agressividade.
Tem-se a impressão de que os conflitos entre os participantes nessa edição do BBB refletem a polarização política e a dificuldade de integração ou união em torno de ideais que extrapolem as pautas identitárias fragmentadas (quase individualizadas).
Porém, é preciso não esquecer que ali se trata de um jogo. Jogo que possui manipulações pessoais e institucionais. As pessoais são, por exemplo, a construção de personagens, as cenas de sedução dirigidas intencionalmente ao público ou as falas roteirizadas pelos próprios integrantes e executadas com a esperança de que alguma câmera as capture e divulgue.
Há também as manipulações institucionais, como a construção narrativa dos acontecimentos por meio da seleção de cenas e sequências que serão exibidas ao público, a ênfase em um personagem e até o comentário do narrador ou do humorista que transforma em comédia e drama os atos dos personagens da cena. Além disso, há, provavelmente, as manipulações institucionais que não podem aparecer, que pertencem aos contratos e às coxias, das quais o público não tem ideia (e não quer ter!).
Mas chega uma hora que algo sai do roteiro de cada um, algo extrapola. O confinamento ajuda nisso. Sartre o mostrou em sua peça Entre Quatro Paredes, de 1944. Dizia uma das personagens: “o senhor não é capaz de fazer parar a sua boca? Ela gira como um pião debaixo do nariz”. Lembro-me da anedota dos porcos-espinho no inverno, que Freud também aproveitou para abordar a dificuldade do relacionamento humano.
Na casa BBB, o confinamento se mescla a um olhar que não se vê e a um julgamento que se supõe. Daí que a ambição individual remodele os personagens depois de seus arroubos agressivos ou sexuais (ou ambos).
É fato que há ambições pessoais como, por exemplo, aquelas relacionadas à carreira artística ou à possibilidade dela, mas o enunciado do jogo deixa claro que o prêmio é dinheiro e somente um irá ganhá-lo.
Estaria nesse ponto uma caricatura do discurso atual cujo núcleo não é interrogado?
Por um lado, o público é convidado a julgar de seu lugar confortável de convicções pessoais que não necessitam de explicações ou justificativas. Nem é preciso se expor para julgar. Nesse lugar, o que está recalcado é justamente o fato de que não é o outro que está sendo julgado. Na internet, sobretudo nas redes sociais, todos estão expostos e são avaliados.
Por outro, a própria estrutura do jogo remete à perversidade da lógica segregativa: é preciso eliminar pessoas da convivência, do grupo. Algumas porque causam problemas, outras simplesmente por antipatia. Isso remete quase instantaneamente à ideia de que o grupo (ou a sociedade) funcionará melhor se eliminarmos o que é ruim. Dito de outra forma, há quem não tem valor ou que perca o valor a partir de determinado ponto. Lembrando Agamben: Vida nua?
Porém, ali, mais que eliminar o outro que incomoda, é a competição de todos contra todos que impera. Nesse “jogo” de eliminação, restará apenas um, o “melhor”. O interesse precisa suplantar os afetos, os laços.
Da estrutura desse jogo quase ninguém fala. Estamos imersos num discurso de competição e meritocracia no qual o interesse individual circunstancial se sobrepõe à solidariedade. É preciso desconfiar de todos, calcular os passos, verificar qual a próxima jogada do outro. Aí está o rosto social do qual o BBB é a caricatura.
O fato é que, de certa forma, estamos confinados em sociedade, precisamos uns dos outros. Haveria um caminho político, social e econômico que permitisse encontrar outro rosto, outro semblante, menos distante da solidariedade?
Gostei muito da análise, Hélio! Clara, compreensivel e útil para a necessária leitura ética e política do fenômeno BBB.