A primeira resposta é "pode, estamos numa democracia". Contudo, isso não é tão simples ou óbvio como pode parecer.
Primeiro porque nomear-se psicanalista e simultaneamente apoiar tortura, superioridade racial, superioridade de gênero, misoginia, homofobia e posturas anticientíficas é uma contradição incontornável. A psicanálise, com todas as dificuldades de sua constituição, que se reflete na história de suas instituições, implica o escuta do outro, o acolhimento das diferenças, o questionamento das identificações imaginárias, a liberdade de pensamento.
Mas há uma outra questão relevante e, na verdade, fundamental também. O psicanalista não trabalha com verdades acabadas, prontas, imutáveis, transcendentais. Por isso, qualquer perspectiva que tenha entre seus enunciados a veiculação de UMA verdade sobre o humano, esse corpo falante que ama e odeia, não dialoga com a psicanálise. Qualquer um que assuma saber sobre a verdade que produziria a felicidade e o bem-estar coletivos não conseguirá ocupar o lugar de um analista para outra pessoa. Nem conseguirá realizar uma leitura da realidade compartilhada que mantenha um mínimo de espaço para o imprevisível do gozo, do inconsciente, do sujeito e de suas próprias questões.
Não se trata de relativizar tudo, precisamos encontrar (ou produzir) verdades que nos sustentem na possibilidade de vida em comum e na utopia de que ela seja sempre melhor. Mas elas são relativas, provisórias.
Porém, aqueles que se nomeiam "bolsonaristas" acreditam terem encontrado A verdade. Seja aquela do inimigo a combater, do mal a extirpar, seja a enunciada pela boca do próprio suposto messias - e que muda de acordo com as circunstâncias, mas não perde seu valor de verdade, mesmo que necessite de um trabalho mental de distorção e justificação enormes. Arrisco-me a dizer que os bolsonaristas não encontraram A verdade, mas encontraram nessa verdade que advogam algo do seu a (objeto a).
Sim, um psicanalista pode ter sido enganado e ter se colocado no grupo dos bolsonaristas. Qualquer um pode ser enganado. Não, um psicanalista não pode continuar sendo um deles. Se continuar, onde deveria haver um espaço derivado da perda (ou da castração), um excesso mortífero foi alocado. Seria bom que retomasse sua análise.
Grande Hélio, lúcido e sábio!
Muito bacana, professor! Parabéns pela lucidez